sábado, 8 de outubro de 2011

Os livros que nunca lemos...

Crónica de Manuel António Pina*  (Notícias Magazine, 11 de setembro de 2011)

Não é difícil imaginar que Umberto Eco tenha muitos livros. E que, se improvavelmente viver num T3, decerto terá, como muitos de nós, estantes no hall, nos corredores, nos quartos, na sala de jantar.
Já não me lembro onde conta Eco a história de uma senhora que o visitou e, surpresa com tanta “livralhada”, lhe perguntou: «O Sr. Professor já leu estes livros todos?». O Sr. Professor ter-lhe-á respondido(cito de cor): «Não, estes chegaram só ontem, são para ler até ao fim de semana. Na segunda-feira vem o camião da Faculdade para os levar e trazer novo carregamento.»
Eco pretende ilustrar o óbvio: que os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que nunca chegará. Sugere, a propósito, uma irónica e bizarra teoria mágica: tocando os nossos livros que não lemos, ao procurar outros ou a arrumá-los, algo da sua natureza parece “passar” para nós… através dos dedos. E quem sabe se não estará certo? Como ele, ambém eu conheço confusamente cada um dos livros que nunca li, mas acho que a coisa tem mais que ver com o coração do que com os dedos.
Há uns meses mandei pintar a casa. Ora, para pintar as paredes com estantes, os pintores retiraram delas todos os livros (todos não, pois quando, em pânico, descobri o que acontecera, instruí-os para que, a partir daí, pintassem apenas as paredes sem estantes) voltando, depois, a colocá-los no lugar. Eu disse “no lugar”? Deveria ter dito apenas “voltando a colocá-los” pois o lugar perdeu-se para sempre. Agora, quando procuro um livro, onde antes o encontrava de olhos fechados, dou sempre com outro.
É assim que venho assustadamente descobrindo a imensa quantidade de livros que tenho em casa, alguns deles desde a juventude, e que nunca li nem provavelmente lerei. Assim, quando um dia destes, fui ao sítio onde sempre estiveram as Poesias Completas de Frei Lúis de Léon, dei com O Capital de Karl Marx; e quando procurava as Gramáticas da Criação, encontrei um pouco de tudo, lido e não lido, das Folhas Caídas a Godel, Escher e Bach e de A Cantora Careca ao Memorial do Convento. Menos o livro de Steiner, que tive de voltar a comprar.
Quando um dia, numa entrevista, perguntaram a Borges quem era ele, respondeu que era todos os livros que lera. Eu quero crer que somos não só os livros que lemos mas igualmente os que não lemos. (…). Do mesmo modo, eu serei tanto a Ilíada, Os Cantos, The Waste Land, ou até Joanica- Puff, que li vezes sem conta, como o facto de nunca ter lido O Capital ou de só ter lido menos de metade do Ulysses; a Viagem ao Fim da Noite e não A Montanha Mágica; a Torah, boa parte do Zohar, o Tao-te-King, a Bíblia e não o Corão; Assim falava Zaratrustra e A Gaia Ciência e não (infeliz de mim que já o comecei inutilmente várias vezes) o Tratactus; Borges praticamente todo e Beckett (deveria ter vergonha de confessá-lo) muito pouco; Jules Laforgue e Charles Cros mais do que( outra confissão vergonhosa)Rimbaud; e por aí fora que a biblioteca é vasta e a vida é breve.
Às vezes pergunto-me quem raio seria eu se, em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li. Provavelmente cruzar-me-ia comigo e não me reconheceria.
*Manuel António Pina ganhou o Prémio Camões 2011, o maior prémio literário de língua portuguesa. Nascido na Guarda( 1943) é jornalista e estreou-se na poesia em 1974 com o livro “Ainda Não É o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde”. Consensualmente reconhecido como um dos melhores cronistas de língua portuguesa – ainda hoje assina crónicas diárias no Jornal de Notícias –, este autor publicou dezenas de livros de poesia e de literatura para crianças, mas só em 2003 se aventurou na ficção “para adultos”, com “Os Papéis de K.”.
Se a sua obra de ficção é menos conhecida internacionalmente, a sua poesia está traduzida na generalidade das línguas europeias. O seu mais recente livro de poemas, intitulado “Os Livros” (Assírio & Alvim, 2003) venceu os prémios de poesia da Associação Portuguesa de Escritores e a da Fundação Luís Miguel Nava.